"A política é para crianças?" - Ciclo Memórias de Intenção Política - Por Madalena Wallenstein

“Libertem os Patos!”, disse a atriz. E, imediatamente, de um pequeno corpo político, ecoou a voz – “E os Patinhos também!” Era a voz do João (8 anos) que se manifestava durante a conversa que se seguiu ao espetáculo A minha Casa Era a Sede, espetáculo que integrou o Ciclo Memórias de Intenção Política.

Mas o que faz uma criança de 8 anos numa conversa-debate, a seguir a um espetáculo integrado num ciclo sobre política e infância? Pode dizer-se que faz o fundamental de um projeto invulgar.

O ciclo Memórias de Intenção Política trata-se de um projeto que partiu de interrogações prementes sobre programação artística para a infância e que decorreu entre janeiro e abril de 2017. Este Ciclo reuniu cinco espetáculos que partilham a transposição literária de histórias autobiográficas para um espaço performativo íntimo, explorando os temas da Liberdade, Resistência, Colonialismo, Refugiados, Revolução, Cidadania, Possibilidade de Ser.

A Minha Casa era a Sede, de Judite Canha Fernandes e Teresa Gentil
©Manuel Ruas Moreira


Um Mini-Museu Vivo de Memórias do Portugal Recente, sobre processos de transmissão de memória política, de Joana Craveiro/Teatro do Vestido, dirigido a jovens: a partir das memórias das pessoas, aborda-se a ditadura portuguesa de 1926-1974, a revolução de 25 de Abril de 1974 e o processo revolucionário de 1974-76.

Tem havido nos últimos tempos, em Portugal, a emergência de inúmeras manifestações artísticas nas áreas do teatro, literatura e cinema que procuram desobstruir o silêncio sobre a perseguição da ditadura do estado-novo, a guerra colonial, a revolução ou o processo de descolonização, criadas por artistas que não eram nascidos na época e que, por isso, não viveram esses acontecimentos. Um Mini-Museu Vivo de Memórias do Portugal Recente propõe-se ativar esse diálogo intergeracional. O espetáculo começa com a pergunta: “Quanto tempo é preciso passar para que possamos falar sobre isto?”. Joana Craveiro monta o espetáculo a partir de uma profunda investigação das histórias de anónimos que as viveram. “O que me tem interessado reflectir é sobre este espaço comunitário de possibilidades, de troca, de encontro intergeracional – de confronto, por vezes – e de possibilidade de reconciliação…”(Joana Craveiro, 2016).


Excerto do documentário Política por Crianças, realizado por Miguel Oliveira (14 anos).



Terra Sonâmbula, de Nuno Pino Custódio e Rosinda Costa a partir do romance de Mia Couto: a humanidade de um rapaz e de um velho que atravessam geografias da guerra em Moçambique.

A ação passa-se “Em lugar onde a guerra tinha morto até à estrada, um velho e um miúdo que procura os seus pais, seguem caminho, bombaleantes...”. No espetáculo, a atriz Rosinda Costa só faz uso da voz e do corpo para evocar esses espaços, tempos, personagens, emoções e ações. “Eu não faço o espetáculo para vocês, faço o espetáculo com vocês, com as imagens que a vossa imaginação produz  a partir dos gestos e das palavras que vos ofereço.”, disse Rosinda Costa numa conversa com os espectadores a seguir à apresentação de  Terra Sonâmbula.

Rosinda Costa em Terra Sonâmbula
©Manuel Ruas Moreira


A Minha Casa Era a Sede, um espetáculo de Judite Canha Fernandes e Teresa Gentil: histórias contadas a partir de infâncias passadas na clandestinidade política e na ruralidade católica.

O espetáculo parte de um conto de Judite Canha Fernandes sobre a sua infância. Filha de um casal de operários, agentes políticos clandestinos de um partido da resistência à ditadura portuguesa, conta o que é viver escondido e desejar fazer uma pequena revolução. Conta como transgrediu a transgressão dos pais que não iam à igreja quando, no desejo de se aproximar do comum do qual as amigas faziam parte, foi clandestinamente à missa com a irmã e provou a hóstia. Parece distante, mas há uma aproximação ao contexto histórico recente e, adicionalmente, as crianças sabem o que é estar escondido ou estar preso. As crianças também têm de se libertar das suas infâncias limitativas.




Cartas de Damasco pôs-se em cena a partir de e-mails trocados entre duas jovens que se conhecem pela internet, Ana Lázaro, encenadora e Leen Rihawi, uma jovem de Damasco que sonha ser escritora.

O espetáculo coloca os jovens espectadores em relação com a informação que já conheciam das notícias sobre a guerra na Síria e refugiados.  As crianças e jovens ouvem estas notícias mesmo que ao longe. O assunto, no espetáculo, é proposto a partir de uma perspetiva empática e envolvente: a Internet é a paisagem de relação entre as duas personagens: Ana, a jovem encenadora portuguesa, e Leen, a jovem de Damasco que quer ser escritora. Assistem ao acontecimento do encontro casual entre elas através da vídeo-projeção de um ecrã de computador e à amizade e cumplicidade a ser arquitetada no decorrer da narrativa, “Apesar de nunca se terem visto. Apesar de nunca se terem conhecido pessoalmente”. Os espectadores reconhecem-se nesse universo. Ficam silenciosos e suspensos e espreitam com curiosidade para dentro do reconhecido e do novo quando Ana e Leen contam sobre a troca de referências musicais entre elas, sobre como são os dias de uma jovem numa cidade em guerra onde caem bombas, sobre ir à escola mesmo assim, sobre os dias sem água nem eletricidade, sobre ser árabe mas não usar hijab (lenço na cabeça), sobre as roupas de que gosta ou os sonhos que sonha para o seu futuro, sobre a falta de liberdade. Contam como na Síria é perigoso pôr likes no Facebook porque desapareceram pessoas por causa disso ou como Leen se vê  a escrever e-mails à Ana por código.




Agora Eu Era é um espetáculo-oficina de Pedro de Moura que explora possibilidades de ser e a participação numa cidade.




O projeto de programação da Fábrica das Artes fundou-se a partir de sucessivas experiências que se propunham desinstalar conceções de infância, arte e educação naturalizadas e institucionalizadas para ensaiar alternativas, explorando relações entre estes conceitos e desenvolvendo uma educação artística cuja experiência estética decorresse no interior de uma arte contemporânea vital e implicada com o mundo e com a vida. Educar para as artes é, para nós, educar nas artes. No interior de uma programação artística de uma instituição cultural é possível criar situações que gerem fissuras nas conceções estereotipadas e naturalizadas de arte para a infância e numa dimensão educativa tradutora, didática, explicativa ou de entretenimento, de modo a reconfigurar a sua perceção e significação. A investigação que desenvolvemos é a exploração destas ideias no campo da programação artística para a infância.

O ciclo Memórias de Intenção Política foi uma dessas experiências. Para a realizar convidámos artistas a criar objetos artísticos na área das artes performativas sobre temas políticos. Escolhemos artistas que, no seio do seu trabalho, tivessem condições para assumir perspectivas que levassem a problematizar as infâncias e a considerá-las na construção e comunicação da sua arte. Queríamos ensaiar proximidades entre juventude, política e participação.

Para que esta experiência de programação tornasse mais profundas as zonas de exploração de proximidade aos espectadores, tomámos as narrativas autobiográficas como detonador artístico para a implicação dos jovens espectadores. O trabalho artístico autobiográfico joga numa fronteira ténue entre realidade e ficção, relacionando e ampliando as questões contemporâneas que encontram ressonância nos espectadores.

O sentido político que se inscreve no conjunto destes cinco espetáculos passa pela atualidade política que os temas propõem ou pela ressonância histórica que estes têm no presente.

Ao autorizar a infância a um universo temático que normalmente lhe é vedado, estamos a redistribuir relações de poder e a propor inscrever uma comunidade de iguais e de simultâneos, porque a simultaneidade das vozes é que é a assembleia. Esta comunidade constrói-se, não por critérios etários, mas a partir da vivência de uma experiência sensível comum que agrega muitas idades em redor de um objeto artístico contemporâneo - uma arte vital que não separa a arte e a vida. Desmantela-se mais esta fronteira e desinstalam-se pressupostos que encerram a infância em si mesma. Dá-se um passo afirmativo face à dimensão política da arte e da infância.


Nota: este texto foi elaborado com base no artigo "As vozes da infância numa comunidade artística" (Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa, maio de 2017) e na palestra "A política não é para crianças?" apresentada em Paris, em junho deste ano, na 12ª Conferência Internacional Arts in Society, ambos assinados pela autora.

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