Um sonho da programadora: entre o privado e o público - Por Madalena Wallenstein

“Então, Pinocchio sou eu?”
Encomenda CCB [Fábrica das Artes] - A partir da obra de Carlo Collodi

Desta vez o impulso para programar chegou de um sonho sonhando numa noite inquieta. O caloroso jantar na companhia dos meus filhos, dois jovens adultos implicados na compreensão e participação no mundo, foi animado pelo debate sobre notícias televisas apanhadas no ar no meio da azáfama caseira que precede o momento. Os diretos televisivos tinham entrado casa a dentro: assistíamos ao ex-primeiro-ministro ser preso no aeroporto, assistíamos à comissão parlamentar de inquérito ao caso BES e escutávamos com perplexidade e desconfiança os discursos dos inquiridos que faziam intuir jogadas de verdade e de mentira no tabuleiro. Pelos milhões de euros anunciados, estas notícias contrastavam com outras: o aumento da taxa de desemprego, os cortes nos salários e nas pensões, manifestações de estudantes universitários contra cortes nos apoios às propinas, cortes na saúde, educação, investigação científica, cultura e, para fechar, histórias pessoais reveladoras de miséria. A narrativa desencaixava a ordem social, política e financeira. As perguntas dos meus rapazes espraiaram-se no silêncio da televisão desligada e alimentaram a conversa sobre os destinos do mundo e dos jovens nele:

“Porque é que alguém faz estas escolhas para si e para as pessoas que governa? O que é que lhes faltou para ultrapassarem a linha que nós e as pessoas como nós jamais passariam? Que história é que agora irão contar aos meninos para se portarem bem e serem bons cidadãos?”.

Foi justamente nesta noite que o Pinocchio me visitou. Vinha no corpo e na voz do ator Tiago Barbosa. Dançava e cantava canções com o seu grilo sobre desejos e angustias do altíssimo corpo que o traz, ágil, como um boneco articulado e vivo. Nas caras dos tais senhores, sentados em seu redor, impunham-se os narizes e as orelhas que lhes cresciam.

As aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi

O texto, escrito nos finais do século XIX (1883), publicado em capítulos como peripécias num jornal infantil italiano, é relativamente recente quando comparado com os textos clássicos da literatura infantil. As aventuras de Pinóquio tem uma natureza historicamente situada, próxima de nós – a sociedade industrial de raiz iluminista, na qual a escola ocupa um lugar central como elemento organizador do tempo, do espaço e da ordem social. Passa-se num contexto urbano, artesão, pobre, e foca-se nos ritos de passagem de um adolescente, um Pinocchio que erra, sofre e se redime para tornar-se humano [adulto?]. O Pinocchio é perturbador enquanto conto infantil porque está na fronteira daquilo que pode ser o mau exemplo. Pode ser a sugestão do contrário ao sentido educativo. A narrativa do Pinocchio é a do mau menino. E a prova disso é a torção que o Walt Disney faz para não deixar espaço a essa ambiguidade. Na versão de Walt Disney, Pinocchio é um menino pobre e endiabrado que tem que aprender a portar-se bem. O texto de Collodi é bem mais interessante, complexo e escuro do que história que a Disney nos quis contar. O protagonista oferece-se hoje como um lugar abissal para pensar o infantil, a educação, o crescimento, a procura do seu interior e de um lugar no mundo. O texto permite também inúmeras leituras por públicos de diferentes idades e esse facto encontra-se com o que temos vindo a explorar na Fábrica das Artes – uma programação para todas as infâncias. O espetáculo ofereceu-se a pais e filhos como experiência artística, como experiência do fantástico do universo de Pinocchio, para nos questionar sobre o prazer e a alegria, mas também sobre a pressão hoje exercida nos novos para procurarem modelos que não encontram pontos de fuga nem ressonância no mundo. No ponto em que nos encontramos atualmente na história, poderemos pensar num movimento narrativo contrário ao de Collodi: do prazer e do humano para a marioneta manipulada e circunscrita? É esse o risco que corremos? Os artistas encontraram talvez uma resposta possível:

Pinocchio: Mas Pai... a pressão é tanta da parte de quem olha para nós, que queremos tornar-nos referências, queremos deixar um marco, queremos ficar na memória das pessoas. Tu estás a querer dizer que é possível viver sem querer estar a representar uma história?

Gepetto: Naturalmente!

P: Viver a nossa história em vez de a representar?

G: Claro! Tens que viver a tua história, passares por coisas. Magoas-te aqui sem querer, recuperas, és bom para alguém, depois sentes umas coisas e, se calhar, não és tão bom para aquele… A vida é assim, não podes ser sempre uma coisa da cartilha. O caminho para o que as pessoas dizem que é a felicidade é ires andando e ultrapassares as dificuldades que aparecem, percebes?“

in texto do espetáculo “E então, Pinocchio sou eu?”, de Ainhoa Vidal, Gonçalo Alegria, Tiago Barbosa e Inês Rosado


Da certeza de Tiago Barbosa para o papel de Pinocchio, seguiu-se o convite à Ainhoa Vidal para assumir a direção artística e a encenação. Para Gepetto, criador do boneco e da vida, convocámos Gonçalo Alegria e, com ele, a sua energia criativa temperada de música e da acutilância filosófica e política que lhe é própria.

O desafio da programação foi oferecido a partir de uma pergunta: como recontar a história de Pinocchio hoje?

As primeiras imagens revelaram-se através da sinopse e imagem para o programa:


"E então, Pinocchio sou eu?" - Espetáculo de teatro 

Ainhoa Vidal, Gonçalo Alegria, Tiago Barbosa e Inês Rosado

"E então, Pinocchio sou eu?" (c)Pedro Gonçalves

Agarro numa folha de papel e anoto a frase que há pouco li:

“Num mundo de mentiras dizer a verdade é um ato revolucionário.”

Descobrimos, provamos, procuramos o caminho, escolhemos, criamos ficções e gritamos a verdade como se da nossa vida se tratasse. Sem olhar para trás. E um dia, quando nos voltamos, olhamo-nos ao espelho e por um segundo perguntamo-nos:

- E então, Pinocchio sou eu?


Um espetáculo sobre tudo aquilo que nos faz ser de carne e osso.
Criação Ainhoa Vidal
Cocriação e Interpretação Tiago Barbosa, Gonçalo Alegria, Inês Rosado
Participação especial Madalena Cabecinha, Zoe Vidal
Criação sonora Gonçalo Alegria
Vídeo Gonçalo Alegria
Desenho de luz João Cachulo
Cenografia Carla Martínez, Ainhoa Vidal
Figurinos Ainhoa Vidal
Produção Sara Simões, Produtores Associados
Agradecimentos João, Isabel e Inês Alegria; Pedro, Maria e Rita Rosado; Roque e Lígia Soares; Pedro Gonçalves


Recriar As aventuras de Pinóquio à luz da contemporaneidade não é tarefa fácil. O texto traz consigo uma moral prescritiva e uma escuridão característica da sociedade e da literatura infantil da época. Exige reescrita a partir da relação ética com as infâncias no século XXI.

A Ainhoa Vidal e toda a equipa realizaram um trabalho iluminado e rigoroso na criação de equilíbrios para que os espectadores desfrutassem de um Pinocchio de sentimentos agudos e extremos, vertiginosamente rápido, brilhante, alegre pelo gozo imenso, e cheio também de compaixão e piedade de si mesmo. Essa criação engenhosa, com pesos e contra pesos, preserva do texto original as personagens e o universo delirante e hilariante que as rodeia e, simultaneamente, convoca o humor e elegância de uma inteligência politica e problematizadora da tensão que converge para o centro do debate contemporâneo. As diversas camadas propostas abrem múltiplas leituras para todos os espectadores da sala.

Para cenário, um circo, com tanto de encantatório como de burlesco. Nada melhor do que uma arena para ver crescer um Pinocchio reativo e acrobata numa brincadeira pegada com o mundo. E, para surpresa de todos, a fada dos cabelos azuis afinal eram três: uma crescida, outra a meio caminho e a terceira tão pequena que fez o mundo e o tempo parar à sua entrada. Há que passar o testemunho. Afinal, precisamos delas!

Porque poderá dar-nos boas ideias, aqui fica o manual de instruções para se ser um bom… deixado pelos artistas na folha de sala do “E então, Pinocchio sou eu?”:


Madalena Wallenstein
(Coordenadora e programadora da Fábrica das Artes do CCB)

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