No meio do caos, a Companhia Caótica - Por Rui Pina Coelho

No arranque do blogue da Fábrica das Artes prometemos que, além de ser um ponto de encontro para divulgação de atividades futuras e reencontro com atividades passadas, este seria também um palco de partilha de conhecimento e reflexões sobre a criação e fruição artística.
Para inaugurar esse espaço, a Fábrica das Artes convidou o crítico, dramaturgista, autor e professor Rui Pina Coelho a escrever sobre o espetáculo Sopa Nuvem - Um thriller gastronómico, da Companhia Caótica, decorrido no CCB em Novembro.
Convidamos também os leitores a deixar as suas opiniões no final do artigo. Digam-nos o que acham. Os vossos comentários são preciosos.

António-Pedro no espetáculo Sopa Nuvem - Um thriller gastronómico
(c)João Silveira Ramos

(Nota: o autor escreve de acordo com a antiga ortografia)

Bem sei que para o improvável leitor as considerações prévias que me preparo para escrever são perfeitamente dispensáveis, mas, seja como for, não as consigo evitar. Assim, julgo que devo atacar a crítica destes dois espectáculos – Sopa nuvem e Na barriga – avisando que tenho cada vez menos competências específicas na análise de espectáculos. Tenho-me afastado progressivamente da crítica de teatro (no sentido mais tradicional) e tenho-me deixado enredar num complexo novelo de cumplicidades e (para mim) novas formas de exercício da crítica. Tenho passado mais tempo em salas de ensaios a preparar espectáculos do que em salas de espectáculo a assistir a espectáculos. Dito isto – e num momento em que se listam tantas coisas que foram as melhores no ano que vai terminando – devo admitir que, para mim, a Companhia Caótica foi uma das mais brilhantes revelações de 2015. Poemas para bocas pequenas, uma co-criação de Margarida Mestre (direcção, escrita e interpretação) e António-Pedro (direcção musical e interpretação) foi um regalo de humor e inteligência: era, basicamente, um concerto de uma inesperada ambiência indie, muito cool, muito entusiasmante e delicioso para todas as idades (ainda por cima com uma recente edição em áudio-livro na maravilhosa editora Boca!). Na barriga, com encenação de Caroline Bergeron, interpretado por Catarina Santana, é um delicado poema-teatral, uma ode visual ao nascimento de um bebé. Sentados dentro de uma “tenda-útero” os espectadores (pais e crianças) assistem à recriação possível de um ambiente intra-uterino, circense e bem humorado, ajudando espermatozóides perdidos, comendo bolachas e lidando com mil outras surpresas que só acontecem dentro da barriga de uma mãe, para nascerem uma segunda vez, saindo por uma apertada manga de saída. Didáctico, despudorado, inteligente, simples e despretensioso: tremenda e subtilmente eficaz.

Catarina Santana em Na Barriga, de Caroline Bergeron
(c)CCB/Manuel Ruas Moreira


Mas confesso que o meu entusiasmo em relação à Companhia Caótica se deve sobretudo ao espectáculo Sopa Nuvem: um thriller gastronómico (vencedor do prestigiado prémio Momix 2014), concebido por Caroline Bergeron e António-Pedro. Sopa Nuvem é um espectáculo raro, de honesto e sincero que é. É também um daqueles espectáculos que levanta uma questão nada despicienda: para quem é o espectáculo dirigido – para as crianças ou para os pais? Não é uma questão que seja motivada pelo confronto com as mesmas estratégias narrativas do universo Pixar, onde se apresentam filmes claramente dirigidos a públicos juvenis com subtis e imperceptíveis piscar-de-olhos aos pais... Em Sopa Nuvem não há piscar-de-olhos – toda a estrutura dramatúrgica do espectáculo assenta nesta derrapagem e cumplicidade entre todo o público, não importa qual a idade. É, com efeito, um espectáculo poderosíssimo, indispensável – a meu ver – para qualquer idade. De matriz autobiográfica, trata, muito sumariamente, da procura da receita de uma famosa sopa do pai de António, recentemente falecido. Esta busca é motivada por um pedido do filho de António-Pedro, que tinha nesta sopa a lembrança mais vívida do seu avô. Terno, engraçado, nostálgico, sombrio, misturando eventos da vida real com uma narrativa borgesiana (elíptica e labiríntica), é um espectáculo para todos aqueles que já perderam um pai; para aqueles que têm medo de vir a perder um pai; para aqueles que são pais e que se preocupam com o futuro; para aqueles que cozinham para as suas famílias; para aqueles que estão determinados a aprender a cozinhar um dia destes... Mas é sobretudo para aqueles que não prescindem de um belíssimo e inesquecível espectáculo de teatro. A Companhia Caótica, através de projecções vídeos, música ao vivo, entrevistas a familiares, feijões e chouriço, Cheetos ou chamadas skype, apanha na mouche o caos filosófico e ontológico em que a geração nascida nos anos setenta do século XX se encontra (onde, muito respeitosamente, também me incluo). Este espectáculo transforma numa sopa quentinha todas as dúvidas sobre o futuro, sobre a perda de modelos e sobre a angústia de ter de educar os filhos num mundo perfeitamente caótico e assustador. Tudo isto misturando, a gosto, o medo da morte com o desejo de gozar a vida e baralhando o individualismo e o recolhimento ao espaço doméstico com a necessidade de tocar e ser tocado pela vida dos outros... Da sopa sobra uma lição muito importante: viver não é coisa simples nem fácil, mas a vida há que ser vivida, estejamos nós prontos ou não.

Rui Pina Coelho

Sopa Nuvem - Um thriller gastronómico, de António-Pedro e Caroline Bergeron
(c)João Silveira Ramos

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