Retrospetiva Final de "A cabeça entre as mãos - ciclo sobre os mistérios do cérebro"



 Ilustração © Madalena Matoso



“A Cabeça entre as Mãos – Ciclo sobre os mistérios do cérebro” reuniu dois espetáculos criados a partir de encomendas que a Fábrica das Artes lançou a Sérgio Godinho e à jovem companhia Os Possessos. Incluiu ainda a instalação Cá Dentro – Descobrir o cérebro, criada a partir de um desafio da Fábrica das Artes para que o livro Cá Dentro saísse para fora de si mesmo e se transformasse numa aventura de exploração através de uma instalação. Esta proposta, desenvolvida pela editora Planeta Tangerina, e sobre a qual temos já vindo a publicar aqui no blog, desdobrou-se num conjunto de atividades: dois espetáculos-performance, um conjunto diversificado de oficinas e duas formações dirigidas a adultos. Este ciclo propôs-se, portanto, a explorar tanto a dimensão social e política como o espaço de transversalidade entre arte e ciência ao que teve correspondência a exploração dos mistérios quando tomamos em mão “a cabeça”.
O Pequeno Concerto dos Medos, encomenda da Fábrica das Artes a Sérgio Godinho, partiu d’O Pequeno Livro dos Medos e para além de trazer alguma nostalgia, desafiou o público a pensar sobre uma emoção que fosse comum em qualquer idade, qualquer infância. O músico, juntamente com os seus convidados, criou um concerto com projeção de vídeo e animação ao vivo, com direito a alguns dos seus temas mais conhecidos e sempre focado na temática da emoção/sentimento que é o medo. A surpresa final foi a de nos podermos deparar com um auditório cheio de crianças e famílias a cantar em uníssono as músicas de Sérgio Godinho. A transmissão do reportório de músicas de Sérgio passa, na realidade, de geração em geração. «O que trocamos entre conhecidos e desconhecidos, quando cantamos no concerto de Sérgio uma das suas canções? (…) De quem são afinal as canções do Sérgio?» (editorial FA 18/19)
Outra encomenda feita pela Fábrica para integrar este ciclo foi A Bolha que, sendo mais do que uma peça de teatro, deu visibilidade ao trabalho da jovem companhia Os Possessos. O profundo trabalho de pesquisa que desenvolveram integrou encontros de pensamento e escutas mútuas dinamizadas por Dina Mendonça (da área de Filosofia com Crianças) com grupos de jovens adolescentes do Liceu Camões, Centro Hellen Keller e com o grupo de Amigos FA (clube de espetadores). O resultado foi uma criação artística com a qual estes espetadores adolescentes se identificaram.
A proposta da Fábrica das Artes foi também a de que o processo de criação d’Os Possessos levasse a discussão para o espaço da escola, permitindo o encontro entre os artistas e as novas gerações a quem o espetáculo prioritariamente se dirige. Estes encontros deram oportunidade a ambos de terem um espaço de debate onde se pudesse pensar e filosofar sobre a dicotomia alienação/consciência da sociedade contemporânea. João Pedro Mamede, Catarina Rôlo Salgueiro e Miguel Cunha levaram à Sala de Ensaio o resultado deste trabalho, aliado à sua residência na Noruega onde desenvolveram grande parte deste trabalho.
Tendo em conta que os adolescentes e jovens adultos universitários fazem parte das faixas etárias que, habitualmente, oferecem mais resistência em vir ao teatro, e numa tentativa insistente de trazer este público às atividades artísticas, a Fábrica das Artes uniu-se à experiência de reflexão antropológica “Encontros”. Esta iniciativa é uma colaboração entre o Núcleo de Estudantes de Antropologia/Departamento de Antropologia do ISCTE-IUL com o CCB – Fábrica das Artes. A partir do espetáculo A Bolha foi possível proporcionar a este grupo de estudantes uma reflexão antropológica sobre a criação artística e a exploração do universo temático do espetáculo. 
A instalação Cá Dentro – Descobrir o cérebro fez com que o livro Cá Dentro ganhasse vida e deu oportunidade a escolas e famílias de pôr em prática algumas das ideias sobre as quais as autoras se debruçaram. O desafio da Fábrica das Artes lançado à equipa da Planeta Tangerina era o de dinamizar o livro, transformando-o em jogo/instalação. Foram criados três percursos para os quais foram preparadas visitas guiadas orientadas pela equipa FA: “o que acontece cá dentro quando me perco num livro?” (percurso azul); “o que acontece cá dentro quando vou a um lugar pela primeira vez?” (percurso verde) e “o que acontece cá dentro quando brinco?” (percurso vermelho). Foi a partir desta instalação/jogo que se desdobraram espetáculos, oficinas e formações para adultos.  
Este conjunto de atividades teve o seu arranque com o espetáculo para bebés SêMente, que levou o público numa viagem guiada por dois neurónios, uma espécie de passagem pelo tempo e demonstração musical da evolução do cérebro humano nas várias fases do seu crescimento: desde que se forma (ainda dentro da barriga da mãe) até sermos velhinhos. Lília Esteves e Inês Pereira quiseram mostrar ao público, em modo de canção de embalar, a composição que fizeram com um piano, uma harpa, um hang drum, uma sansula, um sintetizador, uma melódica e até uma cabaça de água iluminada.
O outro espetáculo-performance que partiu do livro Cá Dentro foi Dentroᶟ, resultado de uma parceria entre a Fábrica das Artes e a Escola Superior de Teatro e Cinema. Acreditando na qualidade e profundidade que as criações artísticas para a infância têm alcançado, a Fábrica das Artes foi ao encontro de vários alunos e lançou um desafio para que procurassem integrar e dar continuidade às linhas programáticas. Em Dentroᶟ, Sílvio Vieira e Ana Catarina Santos (jovens artistas finalistas da ESTC) desenvolveram uma performance sobre «o gesto artístico, ao mesmo tempo tradutor e criador das coisas indizíveis», e espantaram o público ao romperem a sua saída de dentro de um cubo misterioso. Este foi um espetáculo sobre os segredos do nosso cérebro, aqueles que não conseguimos desvendar.

                No que diz respeito às oficinas, tivemos na Fábrica das Artes a oficina de artes plásticas Isto Sim, Isto Não, orientada por Madalena Matoso, foram feitos jogos de associação de imagens a palavras - «Será que todos associamos as mesmas palavras às mesmas imagens?». Nesta atividade cada um criava também a sua própria palavra/texto e manipulava as imagens já existentes à sua maneira. O resultado final foi uma espécie de instalação em cubos de acrílico com a coletânea de criações e ideias que foram decorrendo ao longo da sessão.
Seguiu-se a oficina de escrita Pause/Play, com as autoras do livro que inspirou este ciclo - Isabel Minhós Martins e Maria Manuel Pedrosa. Para os exercícios propostos, quem quisesse, podia recorrer à ajuda de um capacete das ideias, do creme hidratante especial para agitar as mãos dos escritores ou até mesmo canetas que escolhiam a quem pertenciam. Pensámos se as nossas ideias podem ser influenciadas por histórias onde nós próprios já nos ‘perdemos’, vimos um excerto de um filme de Federico Fellini, desvendámos um mistério e houve até um momento profundo dedicado ao poder do silêncio, que inspirou os participantes a criarem poemas.
Partindo de propostas lançadas a pessoas que integraram já diversos projetos nossos na área da filosofia para crianças foram desenvolvidas três oficinas conduzidas por Rita Pedro e Dina Mendonça: O mistério de existir, Cérebros metafísicos e Meta-emoções: um bolo de camadas de sentir. O mistério de existir partiu de imagens do livro Cá Dentro para que, posteriormente, se pudesse filosofar sobre a nossa existência, sobre o que acontece dentro da nossa mente, sobre como funcionam as nossas memórias, sensações, ideias e emoções. Os debates giravam em torno de intervenções registadas em papel de cenário que, no final de cada sessão, se iam transformando em mapas de pensamento, quase como uma espécie de desenho de um conjunto de neurónios. Em Cérebros metafísicos Rita Pedro tentou explicar o conceito de «neurónios-espelho» e lançar alguns desafios para que os participantes pensassem sobre a empatia e questionassem filosoficamente como nos podemos sentir ligados e entender o que os outros sentem. Alguns destes desafios incluíram gargalhadas e bocejos contagiosos, um clip de vídeo de Charlie Chaplin, e um momento de desenho livre ao som de música dos filmes de studio ghibli. Todas as intervenções foram novamente registadas num ‘tatami filosófico’ que cobria o chão desta oficina e que deixámos registado aqui. Com Dina Mendonça, em Meta-emoções: um bolo de camadas de sentir, tentámos perceber porque é tão importante sentir as nossas diferentes emoções, pensar sobre elas e perceber a diferença entre emoções e meta-emoções. Testaram-se hipóteses, fizeram-se caixas de perguntas e o diálogo foi aberto e em modo de conversa.
Ainda no leque de oficinas e para fechar o mês de março a Ana Rita Fonseca e a Patrícia Correia dinamizaram as nossas salas com o jogo 86 mil milhões de neurónios à procura de consenso. O jogo teve início no percurso verde da instalação – O que acontece cá dentro quando vamos a um lugar pela primeira vez? -  e seguiu para outra sala, onde os participantes eram divididos de forma a cumprirem as funções respetivas a cada parte do nosso cérebro.
Os encontros para adultos que integraram esta programação foram a formação Quando o cérebro vai à escola e a Formação em diálogo filosófico nas várias infâncias. O seminário Quando o cérebro vai à escola teve inspiração no livro Quando o cérebro do seu filho vai à escola de Joana Rato (Psicóloga da Educação) e Alexandre Castro Caldas (neurocientista). Estes dois especialistas do cérebro orientaram também a formação onde foram apresentados alguns desafios temáticos e discussões orientadas em torno das neurociências, da psicologia e da educação. A última sessão deu inclusive espaço a uma conversa sobre o sono, fez-nos compreender a sua importância e refletir sobre alguns dos problemas que surgem a este nível na adolescência e idade adulta. A Formação em diálogo filosófico nas várias infâncias, uma formação em continuidade para adultos, de Rita Pedro e Dina Mendonça, promoveu o questionamento entre a filosofia e a pedagogia e deu aos seus participantes um espaço de reflexão para se pensar sobre a infância. Estas formações dentro do nosso ciclo permitiram também que os adultos, após visitarem a instalação/jogo, se encontrassem para conversar, partilhar opiniões e preocupações sobre estes e outros mistérios do cérebro.
O ciclo A cabeça entre as mãos reuniu diversas áreas de conhecimento, trouxe novos encontros e reencontros com pessoas de projetos passados, fez-nos mergulhar no mundo dos pensamentos e ajudou-nos «a entender um pouco melhor este lugar extraordinário onde moramos e que nos permite sentir, lembrar, aprender, comparar, decidir, agir, criar…»
(I. M. Martins e M. M. Pedrosa in Cá Dentro)

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